sexta-feira, 12 de abril de 2024

 O discurso não muda, a conversa é a mesma. O mesmo fim de dia repete-se a cada vez. O futuro não chega ao passado, e até o presente se ausenta, como quem não existe e não se dá pela falta de comparência. Ainda deve chegar para o jantar, mesmo tendo morrido há mais de um ano.  Mas hoje, ao sair, o sol pôs-se de outra maneira, a luz deitou-se mais devagar, e dei por mim a vaguear pela cidade presa ao que não muda. E está tudo diferente. E não sei se mudei, se estou na mesma, nem sei se importa. Nem sei se posso dizer que me sinto diferente, que sinto diferente. Porque parece que não sinto nada. Só o vazio parece pesar mais, e os dias iguais com pores do sol que caem diferentes. Vem-me à memória uma frase “ só sei trabalhar, não sei fazer mais nada” e tem-se repetido este ecoar na minha cabeça, saltita em momentos dos dias, à superfície das horas, sem me deixar mergulhar em nada além do que tiver entre mãos. As mãos, as mãos sempre a fazer, e de repente sei que não devia ser só esse o verbo das mãos... Não quero pensar que me tornei no que nunca entendi. Não quero pensar. Queria uma sensação qualquer que me agarrasse, que me cravasse as unhas na pele até à alma. Queria o que eu fui para quem não quis viver além dos vazios, e da sensação da vida a cravar-se na pele nos interstícios dos dias, mas sem o perigo de agarrar a alma pelos colarinhos. Sem mudar os dias além da sensação deles, uma espécie de droga que se toma em horários mais ou menos certos, mas que não nos muda as horas. Queria ser para mim o que fui para outros, e não serviu a ninguém. Vagueio pela cidade, e vou fazendo curvas e mudanças de direcção, como quem muda de assunto numa conversa de tema inexistente, nunca sabemos onde nos leva, onde iremos chegar noite adentro. Vagueio pela cidade e pelas palavras que me navegam, que me mareiam das sensações ondulantes dos barcos parados. Vagueio, mas paro à minha porta, não entro. Não me encontro, e esse tem sido o meu descanso. Agradeço-o várias vezes ao dia, sem querer ter a consciência que o faço. Há mergulhos que se fazem de coragem e de olhos abertos, eu fechei os meus para dentro. Por dentro. De dentro. Não há o que ver, não há o que dizer. Só as palavras dançam, sem saberem onde a música as levará. Querem chegar ao silêncio pleno, mas esbarram no vazio. Nos dias. No trabalho que berra. E nas portas fechadas. Desta vez parece que fecharam a porta por fora. Se calhar fui eu. Só sei trabalhar, não sei fazer mais nada. Se calhar ainda bem. Mas não sabe bem. Também não sabe mal, quando os pores do sol não caem diferentes. O que é diferente muda tudo, sempre quis ser igual. E fui.

domingo, 31 de dezembro de 2023

 311223

Hoje. É um número curioso: dois uns, dois dois e dois três. É só isso, curioso, nada mais. É também o último dia do ano, deste ano. Este ano que não me deixa saudades, mas deixa marcas profundas, e bastantes. Este ano que vai sempre fazer parte dos anos que não esquecerei. Ano de grandes perdas, de decisões pesadas, ano de riscos e de medos. Ano de assumir uma maturidade que me caiu pelos ombros e me mostrou pilares de que a vida é feita, e desfeita. Ano de me virar para dentro de outra forma, de explorar lados que nunca procurei... encontrei na meditação, e no yoga que já me acompanha há algum tempo, uma paz e uma liberdade que me ajuda.

Tenho algumas vezes tentado escolher uma frase para o ano que começa, um mote, um mantra talvez. Mas cruzei-me com esta frase há pouco e fez-me tanto sentido para resumir este ano, que em vez de escolher um começo, vou escolher um fim... que trará um qualquer começo que nem sequer quero ou consigo imaginar. Mas todo o fim é um começo, isso eu sei. " O sucesso não é definitivo,  e o fracasso não é fatal, é a coragem de continuar que conta." A coragem é uma palavra espinhosa para mim.  Não acredito em coragem não havendo alternativa, não havendo escolha, aí não penso que se trate de coragem. Coragem é ter escolha e escolher o menos fácil, escolher de acordo com o que está certo, o que é digno,  com a verdade, independentemente do caminho a percorrer para o conseguir, não pensar no que é mais cómodo ou fácil, pelo contrário ter consciência da dificuldade, mas ainda assim escolher essa via. Ter apenas um caminho: continuar...não é coragem, é sobrevivência, é falta de qualquer alternativa. E não me digam... ah e tal mas continua, não desistiu!... não? uma coisa não implica a outra, há tanta, mas tanta gente, que continua o caminho mas já desistiu... eu muitas vezes sou essa pessoa, acho. Não gosto de pensar isso, de dar a mão à palmatória, de pensar que houve pessoas que me estragaram irremediavelmente para sempre, que a vida me foi roubando de mim, aos poucos. Mas esta frase lembra-me essa ideia, nada é definitivo, nem o que é bom e foi procurado, nem as penas que nos vão encontrando pelo caminho... nada é para sempre. Já diz o ditado (e eu adoro ditados, pois) "não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe". É isto que temos de nos lembrar, não desesperar mesmo quando o desespero se nos entranha no sangue que corre o corpo todo. Há que fechar os olhos respirar fundo e nesse silêncio encontrar essa certeza, tudo faz parte, tudo é parte do tempo, da vida. Há um amanhã diferente, algures. Certo é que o futuro me deixa muito apreensiva, os próximos anos, e este 2024 que segue já a seguir, pode ser um ano de grandes mudanças, de desafios mais que incertos. Em tudo, e com reflexos na economia mundial, que chega até aqueles que acham que com o resto não têm nada a ver... Veremos, mas nada do que se avizinha será fácil, nem numa perspectiva macro, nem na minha micro perspectiva caseira, da minha vidinha dos dias. Da mãe, da filha, do irmão, do trabalho e do tempo para o resto arrancado sempre a alguma coisa. Há que agarrar os pequenos momentos plenos, há que sorrir nos interstícios dos dias, das coisas, do "tem que ser". Olhar para a minha filha, quase quase grande, que grande nunca será, será sempre uma pequenitates para mim, orgulhar-me dela em muitas coisas, desesperar-me com outras, mas sentir nela um coração no sítio certo, os princípios num lugar seguro, dá-me um sorriso de alma inteira. Olhar as minhas duas patudas, já sem o meu grisalho de quatro patas que há dias se despediu de mim de manhã quando me preparava para sair para trabalhar- mais uma perda que fica neste ano que hoje acaba, o meu grisalho teimoso e resiliente. Olhar para elas e ver a alegria, ver a brincadeira e o amor incondicional que nos têm, a vontade imensa de atenção e carinho, e os gestos ternos que se percebem, os olhares que nos querem falar sem ter palavras.  Tantas, tantas vezes como nós, demais. Tudo isso tem uma beleza que toca se nos deixarmos tocar. Se nos deixarmos tocar, como em tudo. E nestas coisas deixo, e gosto, remetem-me para a minha essência, despertam-na, e fazem alguns instantes plenos, momentos meus.

Revejo alguns posts de ultimo ano que já escrevi, aqui e noutras paragens, e tenho saudades. Saudades da esperança, da vontade, do sentimento de começar de novo de alguma forma. Duma folha em branco. Concluo que já não tenho folhas em branco. Talvez seja uma coisa boa, normalmente servem de rascunho para algo. Talvez agora comece a ser altura do "algo".

Bom ano! 

Que o próximo ano vos traga tudo o que precisam para serem felizes!!


segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

 Foi só quando abri a garrafa de vinho. Durante a tarde, a música ligada, os cães por ali e o meu irmão a aparecer volta e meia, e até a ajudar com as rabanadas com técnicas de engenheiro, fizeram a tarde passar bem, mesmo que muito atarefada. O cheiro a canela talvez tenha ajudado. Depois foi o doce da avó, depois já não fiz o bolo de cenoura, substituto do bolo inglês, que era feito para o meu pai, mais ninguém comia… este ano não se fez. Mas passei a tarde comigo, com os cães ,com música, com o meu irmão por bocadinhos. Ao telefone várias vezes, com gente minha, que me faz sorrir, com gente que me liga a perguntar, "viste o céu?... como está?".. não, e lá fui à janela da sala ver aquela maravilha de cores, entre uma rabanada e outra. Ninguém quer crer que esteja na cozinha a tarde toda, entre tachos e colheres de pau. Não é coisa minha, todos os meus o sabem, mas todos sabem porque o faço. Os doces de Natal sempre foi a minha mãe a fazê-los, nunca as empregadas, nunca mais ninguém, senão nós. Bem ou mal, nós. A minha mãe cedo desistiu e recolheu-se, tudo a baralha, tudo lhe faz confusão, tudo é um problema que se chora. Passei o dia de sapatilhas e leggings quentes, não me lembro de alguma vez passar um dia 24 assim, e sem sair de casa, nada. Levantei-me tarde e com uma lista de coisas para fazer... ajuda a não pensar muito, e isso é bom. Às vezes é muito bom. Depois dos doces feitos, a mesa, a loiça do armário da sala, a toalha de Natal. Depois a lenha. Não importa se a casa está quente ou fria, é Natal tem de haver lareira. Mas para isso tenho de ir buscar lenha, e fui, e acendi a lareira. O espectáculo do fogo, a dança das sombras, a intimidade daquele calor. Traz-me muitas recordações... dou por  mim a pensar que talvez por isso agora a acenda pouco… depois arranjar-me, vestir-me. Parecer gente normal, e não um piloto de fogão com banda sonora da boa. Escolher uma garrafa. O mesmo que bebi o ano passado, nenhum vinho muito especial, normal, mas bom. Abrir a garrafa. Abrir a garrafa para mim... só para mim este ano, mas fiz questão de a abrir, para partilhar com quem não está, mas está neste abrir de garrafa, na lareira que tem de ser, no lugar vazio ao meu lado que continua ao meu lado, que estará sempre vazio mesmo que não estivesse. E a abrir a garrafa desatam-se as lágrimas que não esperava. Não se anunciaram, vieram só de mansinho e de rompante, sem se poderem trancar antes de soltas. A garganta a tentar dar um nó que não desate. E pôr o vinho à lareira para aquecer um bocadinho. E aceitar. Aceitar que é assim, que o meu pai já não está, que a minha mãe não sabe de si, nem de ninguém, que está, mas há muito que deixou de estar. Abraça-me a chorar quando lhe digo que sou a sua filha, que sou eu. Abraça-me, diz que não me vê há tanto tempo... e os meus irmãos onde estão? E o Papá? Demora muito a chegar? E o vinho aquece um pouco e depois sirvo-o num copo que acabo sozinha, depois de tudo, à lareira, numa paz que já só consigo ter sozinha. Sozinha com todos os que já perdi, duma forma, ou doutra. E aceitamos. E bebemos o último gole e vamos dormir. Fechamos a luz de fora, e tentamos apagar a de dentro. Amanhã, ou seja hoje, há mais coisas para fazer. Há que meter lenha na fogueira dos dias, quer esteja calor ou frio. 

domingo, 17 de dezembro de 2023

[desconheço a autoria]

 46. É um numero, sempre disse que são apenas números, e são. Vão somando, ou subtraindo conforme queiramos perspectivar. Certo é que o que vivemos já ninguém nos tira, para o bem e para o mal. Há males que serão sempre males e bens que serão sempre bens. Com sorte e alguma inteligência tornamos os males em aprendizagens, em crescimento, em conhecimento da dor, até. Em conhecimento das nossas fronteiras e limites, o que nos leva a impô-los e onde afinal estão - às vezes estão muito para além de onde achávamos que estavam, outras precipitam-se muito antes de o desconfiar, e na verdade nunca sabemos até os testarmos.  De alguma forma a vida, e tantas vezes a dor, vai-nos preparando para o que vier e nalguns casos até o evita. Infelizmente, às vezes, os males evitam futuras felicidades, fazem-nos descrentes, cépticos, demasiado realistas na boca de alguns, e pessimistas na boca de muitos. Seja o que seja somos a soma de tudo isso, do que nos aconteceu e de como vivemos o que nos aconteceu. Como o sentimos, como o sofremos, com que dignidade soubemos responder e aceitar, e como fomos felizes na felicidade que às vezes encontrámos, ou espreitámos, vá. Somos as gargalhadas no meio disso tudo, o saber rir do que nos magoa, das figuras que fazemos, do que somos em caricatura que sabemos esboçar nós mesmos. Rir, rir com quem gostamos será sempre uma das melhores coisas da vida. Eu do alto dos meus 46 aninhos, feitos agora, é o que sinto, o resto teremos sempre: responsabilidades, obrigações, culpas, há até quem tenha arrependimentos (eu curiosamente não sofro desse mal), mas enquanto tivermos com quem rir, quem nos abrace, quem se desvie um tico do seu caminho para nos entregar um beijo a quatro braços, então vale a pena continuar a aprender com a vida a valorizar, cada vez mais, quem o faz. Quem se lembra de nós, hoje e sempre que os dias da vidinha nos permitem parar um bocadinho para nos lembrarmos de viver, de estar, de ser simplesmente. Se fazemos parte desses momentos para alguém e se temos companhia para os nossos, caramba ainda há coisas que fazem sentido. Tanto como estarmos bem sozinhos, de olhos fechados com o sol a bater-nos na cara, como eu estive até há minutos atrás, sentada no chão em frente à janela duma divisão que já foi escritório, onde pensei e cheguei a dizer que poderia ser um quarto, e onde hoje tenho estendido o tapete de ioga (sem uso há duas semanas mas que vou recomeçar assim as dores que me chatearam estes dias me deixem), um caderno rabiscado, blocos e uma manta. O sítio onde a minha pintarolas de quatro patas se aninha ao meu lado enquanto trabalho sorrisos que afinal nem sempre são solitários. Não sei quantos virão mais nem o que se seguirá, já deixei há muito de esperar o que quer que seja. Agora só peço paz, e peço como quem sabe que não pede pouco. Mas se é para pedir... só quem for parvo é que pede pouco, e eu ando a tentar aprender a não ser parva, está visto. 

Fui procurar uma imagem que coubesse aqui e neste dia, bati os olhos nestas linhas, e sim faz-me todo o sentido, mesmo que possa parecer pouco clara a relação entre o texto e o poema (guardei a imagem mas não tenho a autoria do poema, se alguém souber por favor avise-me, não gosto de não dar os devidos créditos). O texto sussurra intimidade, a que me forra momentos, e uma urgência de vida, de começos, de beleza, que se poderia assemelhar à urgência do desabrochar dum botão de rosa, que em nada parece ter pressa para a perfeição. Faz-me sentido, e isso basta.

terça-feira, 7 de novembro de 2023

[foto @peterwyss]

 Bem sei que dizem que é novembro. Mas a mim já me sabe a dezembro. Não sei porquê, talvez os enfeites precoces de natal que já não suporto e que dantes gostava tanto, ou o frio ter entrado assim de rompante, sem se fazer anunciar. Sem ficar à porta uns tempos enquanto nos habituamos ao empalidecer do sol como dum doce que queremos poupar, mas acaba. Gosto do inverno, mas a minha estação é o outono, é aí que me sinto mais em casa, e que mais me apetece ficar em casa, comigo e  gozar as primeiras chuvas como beijos lentos que se saboreiam devagar e repetidamente. As cores para ir vendo pela janela ou para estalar debaixo dos pés, aqueles tons que aquecem o espírito e puxam sorrisos, enquanto o nariz se começa habituar a gelar devagarinho. A lareira passa a ser um sonho que podemos viver e o chá o melhor companheiro para um bom filme ou livro. É a estação da melancolia, e alguns dizem-no como se fosse mau. Como se alguma vez pudesse ser má a doçura da meia luz que nunca fere, ou a ternura das cores quentes. O cheiro da primeira terra molhada. Eu devo ser feita de outono e a estação está nítidamente em extinção. Não sei que pense disso. Não sei.

sábado, 28 de outubro de 2023

 

[trabalho @virgola_]

As costuras já não esgaçam assim, já nada transborda, a força das coisas antigas começa a ser, sinto-a  conscientemente antiga, quase suave, quase. Dou por mim dentro do carro, a acabar um telefonema, e a lembrar-me que à porta desta padaria ou pastelaria ou o que for, anos atrás estava eu naquela mesa, que parece estar na montra, prefere-se aquela porque lá dentro tem a luz toda e vista para fora. De fora, parece que se está na mesa da montra, mas de dentro não há montra, há rua. São perspectivas, é bom que haja muitas e diferentes. Eu estava lá, numa tarde de sábado ou domingo, não sei precisar, e ainda bem, quando poisam as duas tostas que encomendámos, mas  chegam quando já só eu estava sentada naquela mesa. E olhava para fora, para a cena que se passava lá fora enquanto uma das tostas arrefecia, ali deixada e ignorada. Pedida, mas largada. Comi a minha quente, matou a fome. A outra, já fria e intocada, deixada na mesa matou muitas outras coisas. A cena lá fora acabou, sairam vários carros. As vozes deixaram de se ouvir. Eu tomei o café já com o espaço la fora apenas a ser outono e luz e nuvens. Era outono, acho. Para mim era outono. Com esta luz que parece meio adormecida, mas que acorda coisas em nós para adormecer outras que às vezes gritam. Paguei o que se consumiu e o que ficou por consumir. Peguei no carro para voltar a uma casa que nunca encontrei. Chamaram-me casa algumas vezes, nunca chamei casa a ninguém, que me lembre. Casa é o sítio onde podemos sempre regressar e despirmos o mundo à porta, onde nos sentimos seguros e livres ao mesmo tempo. Nunca senti ter a segurança dessa morada em ninguém. Mas cheguei onde moro, depois de muitas voltas à cidade e telefonemas e desculpas. Hoje estou aqui à porta e recordo. Mas já não me transborda a dor e a raiva, a incompreensão de tudo, as costuras da ferida já não rebentam, nem sequer esgaçam. As costuras já não esgaçam assim. 

Vou comprar pão e vou para casa. Agora vou para casa. Fechar a porta por dentro é tão bom. 

sexta-feira, 29 de setembro de 2023


 Era mesmo isto. 

Perfeito.

Quero muito, mas não sei se posso, ou encontro aquele sítio que me leva os olhos e a alma para outras paragens, ou se a vida se mete no meio da vida que quero, que me apetece, que preciso. Falta-me a distância para ter o tempo perto e a solidão para ter vida dentro. Parece que já não sinto nada. Só sono. Sono tenho.

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Às vezes é tão difícil sentir-me em casa, aninhar-me num ninho que sinta meu. Um sítio onde a tristeza é tão possível como a gargalhada. Onde o beijo era tão natural como o silêncio. Talvez seja o Outono a descer-me pelos ombros carregados, ou saber que a Prmavera não abriu Verão algum. Talvez seja eu que não saiba sair de mim senão para me entregar a sítios sem destino, e a devolução ao remetente perde-se sempre no caminho.

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

 

… e depois o arco-íris a saltar do azul do mar. E o livro fecha-se para abrir as cores, as palavras, dar rédea solta aos pensamentos que sonham e nos embalam, às vezes, os dias. Cada vez mais sonhar me lembra o lavrar o mar… como a espuma  que o caminho acalma e o tempo vai apagando. 

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

 Na cozinha com duas cadeiras a fazer de cama, uma almofada na parede para encostar a cabeça, conto respirações de luz apagada, abro os olhos quando por um bocado não oiço nada… o meu coração pára, talvez também ele para tentar escutar melhor. Depois volta a respiração curta e quase em esforço, ainda que menos do que aquele que ouvi e me fez fazer de duas cadeiras uma cama. Há duas horas contei 65 respirações por minuto, os batimentos cardíacos desisti porque eram de tal forma confusos acelerados e fortes que desisti, antes que com o pânico quem tivesse um ataque fosse eu. Agora conto entre 35 e 40 depende. Parece-me que a este ponto depende do sonho que o grisalho cá de casa está a ter. Eu por mim estou num pesadelo há horas… desde que o fui buscar ao hospital dos peludos. Que estava tudo bem, fora de perigo, dois dias depois de entrar por ali a dentro com ele por um fio pela minha estupidez. Não vi na véspera que temperaturas iam estar; os dias de muito calor tinha ouvido nas notícias eram no fim‑de‑semana, depois começavam a baixar. Deixei muita água e deixei-o a sombra depois de lhe dar de comer. Seguiu-se um dia de trabalho, fora daqui como sempre nos dias que correm, a uma hora daqui, quase. E a caminho, atrasada, para não variar, fico a saber que esperam temperaturas de 40 graus… deu-me um aperto, mas achei que estando à sombra, num sítio coberto e com bastante água não haveria problema grave. Estou sozinha, filha de férias longe, irmão de férias mais longe ainda, a senhora que vai fazer a limpeza de férias. E eu a quase uma hora. Liguei para quem estava no prédio para assegurar que ainda havia água nas bacias, e que o moço estava à sombra. Sim senhor a tudo, fiquei mais descansada, confesso. Quando chego a casa a correr escadas acima abro a porta para o pátio de trás e vejo a quase morte a ofegar, os olhos vidrados quase ausentes, não se mexia, reagiu à minha voz pareceu-me. Corri a buscar a bacia com água deitei-lhe um pouco no focinho, fui buscar uma taca pequena e enfiei-lhe água pela goela abaixo. Não se mexia, e arfava como quem foge à frente da morte com ela quase nos calcanhares. Ligo para as urgências, o que faço? Trazê-lo? Ele n se mexe… mas tem de ser, não há outra maneira respondem-me. Ok, nem que o carregue as costas. E foi, não as costas mas  em peso, até ao abençoado elevador que me levaria à garagem. É preciso a chave para o elevador ir até à garagem. Está no chaveiro, com a chave de casa, que na confusão... ficou em casa, do outro lado da porta fechada… ia morrendo eu. Lembrei-me que desde que estou sozinha tenho uma suplente guardada, porque sei que a minha cabeça é tonta e que um dia qualquer isto podia acontecer. Claro que nunca imaginei que estivesse numa tal emergência. Corro, literalmente, subo desço, volto. Finalmente o elevador tem como descer até à garagem. Abro o portão, o carro ficou lá fora ao sol. Domingo esqueci-me de o por na garagem. Se houvesse um Euromilhões ao contrário eu ganhava se jogasse. Certinho direitinho, não há outra hipótese. Pego no bicho em peso, ponho-o aos pés do lugar do morto e rosno com este pensamento. Fecho a porta dou a volta ao carro a correr, tudo sempre a correr, desvairada. Ligo o carro, o ar condicionado no máximo e só para os pés. Não sei como não atropelei ninguém, ou não me desgracei em modo automotor, acho que cheguei ao veterinário em minuto e meio, e entro por la com o cão quase debaixo do braço, só que ele não é do tamanho de um porta chaves… vai directo para debaixo de água. Termómetro, acima de 40 graus. Olha para mim como quem grita, lá dum sítio fundo e de voz sumida. Passam 5 minutos, talvez menos, talvez mais, sei lá. Termómetro. Desceu mais de meio grau. Mais água, álcool porque (aprendi) quando evapora com a água dissipa o calor do corpo. Mais chuveirada no pelo, até que chega à temperatura normal. Eu não falo, não digo nada, olho, oiço, tento pensar se será possível que aquele moço de 14 anos e uns trocos ultrapasse aquilo. Começa a beber água do chão do sítio onde estão a molha-lo, começa a estar presente na cena, a parecer até o quanto lhe está a saber bem a água, começa a sentir-se melhor. Começa a sentir, parece. Já respira devagar. Mais devagar que agora, parece-me, o meu coração dá-se conta que bate, já me sinto respirar. Talvez. Só talvez. Mas reagiu e pode ser que… talvez. Mandam-me para casa e vai lá ficar para o dia seguinte, a soro e análises. As próximas 24 horas são críticas. No dia seguinte o medo das notícias, ligo, nada, depois ligam-me. As análises podiam estar pior face ao episódio de calor e idade. Tem de se repetir ao fim da manhã. E depois de feitas acusaram teimosia extrema, evoluíam positivamente. Tinha-o apanhado e trazido a tempo. Mas ainda não saiu da zona de perigo. E eu não saí de certeza, digo que é melhor ficar mais um dia. Tenho medo de o levar  para casa, pesquisei no Mr Google e os três, quatro dias podem revelar consequências que as primeiras 24 horas podem ocultar. Fica mais um dia internado, mas vou ve-lo ao fim do dia. Está vivaço, levanta-se com alguma genica, bebe água e come com vontade. O meu coração respira de alívio, a culpa larga o lastro de uns tantos quilos… "foi uma sorte, eu estava céptico-  dizia o médico -, e a olvido branca, nem falava, mas chegou cá em tempo recorde e devemos ter feito tudo bem, porque se amanhã continuar assim ,está fora de perigo" não há indicadores que levem a pensar diferente. À tarde liga-me. Ele está bem, e tem alta. Hoje. Há bocado ao fim do dia, mas quer fazer um exame ao coração. Continua com respiração acelerada e ofegante, já não havendo razões para isso... e tem de haver uma razão. Fez o exame e descobriu, tem o coração grande demais - brinco e digo, isso eu já sabia, mas não sei se me entenderam - e continua, ocupa quase a caixa torácica toda, não deixa espaço para os pulmões trabalharem normalmente, e está já a pressionar a traqueia... pois, quem tem o coração grande demais, respira mal muitas vezes, como quem tem um peso no peito, sempre a pressionar. Também já sabia disso, penso para mim, mas não digo, calo. Não me entendem, mais vale o silêncio. E fui buscá-lo e achei que não estava espevitado como ontem. Já em casa acho-o cansado, prostrado, derrotado e quase em esforço para respirar. Sinto-o quente, ponho uma toalha molhada no corpo passo no focinho e orelhas. Não melhora, passado um tempo acalma um pouco. Não estou descansada. Vou buscar as mantas para ficar com o rabo menos quadrado nas cadeiras a fazer de cama. Fecho as luzes. Ponho-me a contar respirações e as horas de sono que não vou ter, mas não consigo sair daqui. Não que faça alguma coisa, não faço, porque não sei o que fazer, senão esperar pela manhã para ligar outra vez. Dizer que alguma coisa não está bem. Ajudem-me. Ajudem-no. Que eu contar respirações por minuto não ajuda a coisa nenhuma, mas não sei que mais fazer para que o coração bata com jeito e não em modo descompensado e sem regras. Tenho sono e uma reunião às 10. E um irmão que tem direito a ainda ter cão quando regressar, a não se sentir culpado por ter ido três semanas de férias quando precisava de três meses, porque quem deixou cá a tratar do cão, do limoeiro, do jardim, do correio, do resto da canzoada e da papelada não conseguiu fazer as coisas bem, com jeito.  É certo que o cão tem o coração grande, agora atestado com radiografia cheia de razões, mas podia ter evitado o calor, deixava-o dentro da cozinha, ainda que não evitasse lavar a cozinha todos os fins de dia. E agora conto respirações e rezo para que nos próximos dias tenha razões para ter de lavar a cozinha todos os dias quando chegar ao fim de um dia de trabalho. 43 respirações neste minuto e três sustos. 

(E não vou reler não me apetece, deve estar cheio de gralhas, paciência, também eu)

sábado, 5 de agosto de 2023

 

Um calor de ananases… e eu a visitar hábitos antigos… Esplanada e café, um livro para começar, um café a que falta uma pedra de gelo. E aquele pacote de açúcar irresistível. Intacto, agora e depois, mas irresistível ao registo. Ao menos ao açúcar o café faz falta. A mim também. 



 As meninas e as sombras. Ou as meninas das sombras. Ou as meninas da luz, daquele dourado de fim de dia que alimenta a alma, que descansa o dia que ainda corre nas veias dos pensamentos, sempre a correr, sempre contra o tempo, sempre a tentar comer os atrasos que vão embrulhando as horas do dia, e a  evitar outros que acontecem, porque têm de acontecer por muito que se corra e combata. Mas depois, esta luz, esta cor a pintar as paredes da minha sala. Sento-me no braço do sofá, como tantas vezes, a olhar para fora, a ver as cores mágicas do sol a desaparecer devagar atrás do horizonte do nosso olhar. E é nessa dança lenta e lânguida que nasce esta magia das cores de fogo lento, que aquece, que conforta, que se instala na alma muito depois de olhar já não as encontrar. As meninas ficam doidas com as sombras na parede, com as formas, com os movimentos. Olham a parede como nós olhamos quadros em grandes museus para lhes apreciar a arte e a beleza, e ficam ali, assim a ver as coisas que vêem, sempre à espera do próximo momento, do próximo movimento, do enigma desse jogo de sombras, que apenas escondem a luz que está lá sempre, por trás das sombras. As sombras são também luz, sem luz não haveria sombra. Escuridão não é sombra, escuridão é ausência de luz, se alguém se habitua à escuridão deixa de abraçar a luz, passa a fechar os olhos de estranheza se algum fio de sol lhe invade os dias, um dia deixa de a reconhecer suponho. A escuridão não engana, não tem formas para adivinhar, não há movimentos para observar, não há ilusões de óptica que nos fazem pensar que algo nos toca, nos afaga ou nos morde, quando a realidade está longe disso. A escuridão come até a vontade de luz, torna a luz incómoda, inconveniente. Como em tanta coisa, há vezes em que fechamos os olhos porque não queremos ver mais, ao contrário daquela frase de "depois de abrir os olhos, depois de se ver, não se consegue deixar de ver". Consegue, escolhemos a escuridão. Escolhemos não ser abalados pela magia, não sentir calor. Sombras não é escuridão. Na escuridão não há cores douradas que chamam a noite pela mão, numa dança lenta, lânguida e cheia de prazer,  em que os sentidos se inebriam do momento e ao mesmo tempo duma antecipação de algo que nos acelera o sangue que não pensa. E eu, aqui, vejo luz e sombras na parede, viro costas à janela por momentos e volto os olhos para a parede, para o improvável.  Vejo este quadro que leva a outros, porque uma sombra leva a outra, como uma luz traz outra luz. Por trás de cada sombra há uma luz que foi calor, que foi vida, que foi magia, é quando essa luz fica em nós que devolvemos sombras, sombras que só vemos porque ao redor há luz sobre todas as coisas.

domingo, 9 de julho de 2023

 Há uma brisa quente que nos sopra os cabelos e a pele, que faz as árvores assobiarem músicas lá delas. A pintarolas de quatro patas vê uma mosca, ou algo voador, que eu não vejo, nem oiço. Uma andorinha cruza o céu azul, imaculado, não há nuvens a esborratar o céu. Aparecem mais três, em voos redondos, sem poisar ou abrandar, sempre à volta da árvore em frente à minha varanda. Sempre que aqui venho ocupa-me os olhos, mas raramente a olho. Provavelmente ela observa-me a cada vez, sabe-me melhor que eu a ela, já terá visto tanta coisa... e então reparo, há ramos que ainda se enfeitam de flores duma cor que não sei se tem nome, mas tem lugar. Ali. Já o pinheiro do vizinho sofreu uma qualquer frustração e baixou-lhe a crista, curvou-se a alguma evidência. Acontece a todos. Sento-me aqui e vejo como é difícil ver coisas novas nas coisas que envelhecem connosco os dias. 

sábado, 3 de junho de 2023


What are your top 7 rules of life?


1. Everything you say should be true but not everything true should be said.

2. Just because a decision hurts, doesn’t mean it’s wrong.

3. The path of inner peace begins with 3 words: not my problem.

4. Normality is a paved road: It’s comfortable to walk but no flowers grow.

5. Never carry old feelings into new experiences.

6. The more you like yourself, the less you’ll need others to.

7. The cave you fear to enter, holds the treasure you seek.


Apanhei isto nos rascunhos, não sei há quanto tempo terei guardado estas 7 linhas em jeito de regras de vida - e eu que gosto tanto de listas e de regras -, mas percebo por que as guardei e percebo que há aqui ensinamentos recorrentes, coisas comprovadas muitas vezes já na minha vida, directa ou indirectamente. E outras que tenho mesmo de interiorizar, a bem da minha sanidade mental.

A primeira há não muito tempo foi tema de diversas conversas. Nem sempre e fácil as pessoas perceberem a diferença entre: dizer tudo, e dizer sempre verdade; para dizer tudo, ou falar de tudo, terem de mentir (mesmo que para supostamente proteger); e não dizer sempre tudo, mas tudo o que se diz ser verdade, sendo que as omissões também não provocam mágoa. São três realidades diferentes, posturas diferentes, valorizações da verdade distintas. É uma regra simples, mas nem sempre é facil de entender, e às vezes mais difícil ainda de pôr em prática. Desde que me lembro que (para mim) a verdade é algo imprescindível, sobrevalorizado provavelmente até, mas é o que me assegura que as decisões que tomo são minhas, bem ou mal mas minhas, com base na realidade das coisas. Sem a informação verdadeira e disponível, as decisões são condicionadas, a liberdadae de opção é-me retirada, limitada - é-me negada, e essa sensação eu detesto e custa-me esquecer, na verdade. Sinto-me manipulada. Prefiro saber a verdade toda e ter de a enfrentar, de lidar com ela, seja ela o que for, e decidir de acordo, do que não saber tudo ou mentiras. Tive durante muito tempo de ouvir realidades que me custavam horrores, mas preferi sempre sabe-las, e ter de lidar com elas e com a dor que me causaram, do que mentirem-me ou omitirem (ainda mais do que fizeram). São opções, e acarretam muitas consequências. Se queremos a verdade depois não podemos maltratar o mensageiro, não podemos dizer que queremos saber a verdade mas depois tornar impossível que nos contem a verdade porque não sabemos, ou queremos lidar com ela. É preciso alguma maturidade e muito estômago, e só é recomendável para quem valoriza muito a sua liberdade de escolha, de opção, de decisão.

A segunda é bastante óbvia, mas é uma verdade que nem todos querem ver. É muito melhor a comodidade do que se sabe e conhece do que decisões que mudam as coisas (às vezes é só assumirem que mudaram, porque há muito que mudaram mas insiste-se em assobiar para o lado). Assumir mudanças às vezes dói, umas vezes a nós, outras a quem nos rodeia. É preciso perceber que só porque dói não quer dizer que esteja errado, há coisas que têm de doer, não há forma de contornar, e se não o assumirmos vão doer doutra forma, às vezes mais, outras vezes mais tempo, e outras ainda mais e mais tempo... mais uma vez protegermos a mentira, fugirmos da realidade, porque é duro, porque nos protege de mágoas e dores não é a melhor decisão. Muitas vezes é mesmo a pior...

A terceira custa-me muito aceitar, confesso. Percebo que seja uma realidade, mas talvez tenhamos de distinguir o que é problema nosso, e o que é problema nosso por vias travessas, por ser problema de quem gostamos, de quem queremos bem. De ser um problema nosso - ou sentirmo-lo assim - não estarem bem. E também distinguir quando podemos fazer alguma coisa, de quando não podemos fazer coisa alguma. Dar murros em pontas de facas não dá saúde a ninguém, sendo em relação a problemas nossos, ou do vizinho. Acho que a paz interior começa onde acabou tudo o que podíamos fazer. Assim faz-me mais sentido. E estou em paz em relação a maior parte das coisas na minha vida, em tudo (ou quase) sei que fui até ao limite das minhas forças, tentei tudo, dei tudo, e tenho consciência que foi esse o preço da paz interior que sinto em relação a essas coisas. Daí também, provavelmente, ter tão poucos arrependimentos na vida.

A normalidade, pois, um conceito estranho. Estranho nos dias de hoje, onde a normalidade não parece muito normal. Porque normal é de facto um conceito estatístico, e não um juízo de valor. Certo é que fazer parte da manada não destaca ninguém, e as flores do caminho, são isso: bons feitos, acontecimentos belos, marcos que ficam pelo caminho carimbados de sorrisos. E Às vezes o não ser da manada é apenas olhar de forma diferente para as coisas, não mais do que isto. Mas tudo é estranho quando o normal hoje é todos serem "especiais". É só mais uma manada. Difícil hoje em dia é pensar pela própria cabeça - e já agora ter uma -, é saber distinguir o politicamente correcto tonto do respeito que o outro nos merece, difícil é chamar as coisas pelo nome e assumir o que se pensa - e já agora pensar e não apenas repetir o que se ouve ou lê nos títulos apelativos. Às vezes serão chamados de malucos, e não "especiais" (que chatice...), outras serão chamados e tratados como coisas piores, mas mais uma vez - e à semelhança do que foi dito umas linhas acima - não quer dizer que estejam errados... o difícil é assumir o que realmente se pensa... ahh e pensar, isso também me parece cada vez mais difícil.

Não trazer mágoas antigas, a bagagem de que a vida nos foi carregando, para os dias novos, para o futuro que se vai fazendo a cada presente. Percebo, mas não me parece que haja forma de efectivamente o fazer. As mágoas antigas, o que nos doeu, o que passámos, ainda que seja já passado deixou marcas à passagem. E ainda bem, é assim que aprendemos e podemos evitar os mesmos erros. Sim, as situações não têm de ser as mesmas, as pessoas são todas diferentes, é certo, mas nós somos os mesmos... e há coisas que já sabemos que não queremos. Mas percebo que não podemos assumir que sabemos ou que iremos reconhecer todas as situações, por isso percebo a ideia, não levar ideias preconcebidas para situações novas, entendo. Acho eu.

Esta sim é uma grande verdade para mim, e que eu gostava tanto de ter em mim. E acho que vou tendo cada vez mais com o tempo, até demais porque cada vez gosto mais e quero mais estar sozinha. Sozinha é como me sinto melhor, não desiludo ninguém e ninguém me desilude, não tenho de tratar de ninguém a não ser de mim, e eu sou low maintenance. Cada vez mais gosto da minha companhia. Quanto mais nos soubermos valorizar, e avaliar o que de bom e de mau temos, menos precisamos de validações eternas e menos nos afectam os defeitos e falhas que nos apontam. Quanto mais certos tivermos do nosso valor menos precisamos que os outros nos valorizem.

Finalmente, os medos. Sim o que haverá de extraordinariamente raro na vida estará do outro lado dum medo qualquer, e é por isso que é raro senão seria o dia a dia. Quando o que queremos é algo difícil para nós então isso estará atrás de um muro qualquer que teremos de transpor, que temos de medo de tentar trepar, que temos medo de não conseguir, que temos medo ponto. Se calhar o que temos de perceber é que o pior que pode acontecer é termos de assumir e confrontarmo-nos com o facto de que não conseguimos. E não é pouco, mas não é tudo. É isso que ando a tentar aprender.

segunda-feira, 29 de maio de 2023

[foto de Jacon Sutton]

 "O mundo é só o chão que pisamos, o resto somos nós" - foi uma das frases que escrevi, e a última que disse quando me pediram as impressões daquela experiência, que pediram para repetir para poderem apontar e ficar, depois de andar pela sala de olhos fechados o mais lentamente que conseguíssemos. E é giro, tudo é diferente quando fechamos os olhos. Temos de reaprender a andar, e aceitar o baloiçar do corpo hesitante como um navegar do tempo desconhecido, do futuro, do passo seguinte. Estou num ponto estranho da minha vida, a dias de voltar a trabalhar, de extinguir o meu posto de dondoca, sem qualquer vontade e com a angústia de pensar que não o deveria fazer já, que preciso de mais tempo, que preciso ainda de me ajustar a muita coisa, de reaprender a andar. Pensei que teria pelo menos dois meses antes de começar a procurar, mas ao invés, vieram à minha procura, muito tempo antes de eu esperar... e por isso esta experiência em que mergulhei nos primeiros dias de liberdade ficam agora meio desamparados, como eu. Há alturas na vida em que começamos a procurar coisas diferentes, ou que julgamos diferentes, e descobrimos que afinal têm muito de nós. O yoga entrou devagarinho nas minhas rotinas, mas tinha o condão de me voltar para dentro, ao mesmo tempo que me calava os diálogos interiores, e isso dava-me paz, descanso de mim. Fiz do yoga uma actividade exigente em que tudo requer atenção, o alinhamento, a posição, o alongamento que devemos sentir, os musculos que ficamos a conhecer e não sabíamos da existência, e isso tudo não deixa espaço para outras vozes - e percebi que era a altura em que habitava mais, mais do meu corpo. Em que tinha mais consciência de cada recanto meu, e do que perdemos no meio do uso diário de nós mesmos. Então embarquei nesta coisa de saber mais, por curiosidade, por vontade, por responsabilidade também... para saber o que ando a fazer, porque sozinha e em casa, sem conhecimentos suficientes, posso magoar-me sem saber como (e já aconteceu andar com uma dor de costas mais de um mês à conta disso mesmo). E agora, depois do primeiro fim de semana de formação em meditação e pranayama, sinto-me meio perdida, talvez até meio na direcção errada. Mas a vida não se compadece de nós, e não espera por nos desenvencilharmos de nós mesmos, de nos resolvermos, de parar a vida, até que possamos acompanhar o ritmo e os dias... daqui a três dias começo a trabalhar e vou ter de encaixar tudo, e vou ter de ser toda em cada coisa. Ainda não sei como me vou fazer, ou aos dias, ou à cabeça que deve comandar as coisas se ainda mal se aguenta com tanta coisa que aconteceu durante tanto tempo, e só agora pareço perceber isso. Depois penso o que diria meu pai de tudo isto... ou até a minha mãe se fosse possível uma conversa... e não sei. Mas sei que teria tanta curiosidade quanto eu em relação a muita coisa, e isso aquieta-me, mas não me reduz a angústia, o peso, o medo. Esse medo de caminhar devagar, descalça e de olhos fechados, que obriga a reaprender equilíbrio, a contar passos para me orientar, a levar as mãos esticadas à frente para saber ao que vou e amortecer os choques... mas sempre esta sensação, de que o mundo, o lá fora é só o chão que pisas, o resto é tudo cá dentro, e não tem de ser escuro. Mas baloiça como os barcos a ajeitarem-se às ondas do mar. Como uma dança de que não conhecemos a música, onde só o corpo e alma são instrumento para tocá-la e dançá-la. 

Nessa complexidade simples de não haver como tocá-la sem dançar, nem dançá-la sem a tocar.